O EXCESSO DE POSITIVIDADE DA SOCIEDADE DO CANSAÇO
Antes de discorrer sobre a positividade, sobre essa sociedade da positividade apontada por Byung-Chul Han, preciso esclarecer que sobre as ideias aqui defendidas ou colocadas ao enfrentamento, as palavras “negatividade” e “positividade” não tem relação com o pensar positivo ou o pensar negativo, tampouco se trata de pessimismo ou otimismo. Embora eu tenha minhas convicções saramaguianas acerca do assunto, pode esse, inclusive, ser assunto para outro pequeno rascunho; Todavia, não falarei sobre ser positivo ou negativo nesse texto.
Pensemos então no termo negativo como sinônimo de “menos”, negar, dizer não a algo, a uma nova ideia, uma nova moda, fazer menos, ter menos “responsabilidades”, como diriam os italianos “Quel bel far niente” e, em contrapartida pensemos no positivo como “mais”, fazer mais, tudo aceitar sem contestar, ter um numero infinito de afazeres, legítimos ou ilegítimos, prazerosos ou não. Byung-Chun Han, em consenso com outros autores aponta a já ultrapassada, porém, resquiciosa era disciplinar. Nesta era disciplinar também apontada e esmiuçada por Friedrich Nietzsche e por Sigmund Freud, adaptavam-se bem os sujeitos da obediência. É verdade que “Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra,” Segundo o conto “O homem de cabeça de papelão” de Paulo Barreto (João do Rio). Todavia, essa sociedade disciplinar não se resumia a um ou outro país, aqui falamos de uma ordem maior, observada quase que em todo o mundo. Mesmo em épocas já distantes em que não havia a velocidade da comunicação dos tempos atuais, os costumes e meios de governabilidade atravessavam oceanos e se espalhavam pelos cantos da terra, impetrando-se nas mais diversas sociedades e culturas. Os indivíduos da obediência eram aqueles que, em tese, necessitavam de uma ordem, um norte, um tutor, um pai a quem obedecer. Igrejas, governos, instituições, convenções, hospitais, asilos, coturnos, fascios, etc.
Entretanto, falemos sobre essa nova sociedade, a do desempenho, do positivismo. Esse mesmo positivismo que faz surgir novas formas de violência, que aleija o senso crítico, deturpa a capacidade de análise e empurra o individuo para todo e qualquer lado sem que ele possa escolher aonde ir. Assim, sem contestar, sem se negar e essa avalanche positiva que tudo lhe impõe, esse indivíduo abstém-se de si mesmo e apenas coexiste. As consequências desta forma de vida são devastadoras. Deste excesso de afazeres não muito lógicos podem surgir patologias como, por exemplo, a Depressão maior. Embalado por essa positividade já embutida no inconsciente social, o homem moderno sucumbe à depressão por não conseguir ser ele mesmo, por não ter mais vínculos expressivos que demandam certo “tempo para si mesmo”, alguma forma de dizer não às hordas irrécuas que vagam sem rumo arrastando a tudo e a todos.
Esta sociedade tão desempenhada produz o infarto da psique, o esgotamento pela pressão do desempenho. Tanto para a Depressão Maior quanto para a Síndrome de Burnout, paralelamente àquilo que vem sendo pregado, até então, novas observações apontam que ambas as síndromes não se tratam necessariamente do excesso de afazeres, mas da falta de sentido daquilo que se faz. Esse excesso, essa positividade, essa adição ilógica de tantos compromissos vazios de sentidos para o indivíduo, consomem sua alma. É imperativo que o indivíduo produza cada vez mais, tenha um melhor desempenho a cada dia, extraia cada vez mais de si mesmo (tem até uns “côuti” que ensinam como se pode extrair mais de si mesmo). Um exemplo muito claro e facilmente observado é o fato de que a sociedade do desempenho substitui o “Brincar” das crianças, tão necessário para um bom desenvolvimento, por tantos compromissos. Já desde a primeira infância crianças substituem o brincar por uma nova disciplina qualquer para que a criança se “desenvolva” antecipadamente, para que aprenda desde a mais tenra idade a transformar-se num animal laborans e deliberadamente explorar-se a si mesma.
Esse perigoso engodo da positividade, do tudo poder, irrompe quando o indivíduo encontra algum limite e não consegue mais “positivar-se”, desenvolver-se além de algum ponto e, então, passa a culpar-se pela própria derrota, uma derrota impetrada, segundo a sociedade do positivismo, a ele por ele mesmo. Um exemplo muito claro desse tipo de sociedade é o Japão (nação que tanto admiro), um País que renasceu após sua destruição durante a segunda guerra mundial, um País que se reinventou quase que por completo. Todavia, impulsionado pela pressão positivista, não sei onde ou em qual momento, deixou de lado a negatividade, a possibilidade de um indivíduo poder fracassar sem ser julgado. Data vênia, embora tão desenvolvido, é o País com maior número de mortes por suicídio.
Uma sociedade que tira do homem o direito de errar, faz com que este homem perca essa característica sine qua non da humanidade. Logo, se torna um animal laborans e se equipara a uma máquina de produção, sem repouso, sem desejos, que não sonha e que nada questiona. Uma máquina autônoma que produz mais e mais, cada vez mais, em um tempo menor e por um menor valor, que não olha para o outro (não existe o outro). Todavia, de tanto fazer e de nada alcançar, este homem se deprime por não suportar tão elevada carga de positividade, afazeres, planos e projetos, possibilitariam a ele alcançar o impossível, pelos quais abriu mão das preciosidades da vida.
“A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. (HAN, 2017, p.29).
O excesso de positividade, de afazeres, de estímulos, esta famigerada multitarefa tão adorada, jamais representou ou representará algum progresso para a civilização. A multitarefa é e sempre será um imenso retrocesso. Das vinte e quatro horas de cada dia, quantas horas nos restam para que possamos contemplar o pôr-do-sol, acompanhar o desenvolvimento das crianças em alguma brincadeira, observar o crescimento dos filhos ou suas tarefas escolares? De todos os anos destinados aos estudos e ao trabalho, quantos anos sobram para a realização dos sonhos, para as férias tão planejadas, para a contemplação da vida? Desde quando a busca pelo bem-estar, pelo bem-viver foi substituída apenas pela luta pela sobrevivência? Quando foi que a contemplação da vida foi substituída pela hiperatenção tão vazia de sentidos?
“Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”. (NIETZSCHE, 1967, P.29).
Se desde antes de Cristo Cícero já exortava o homem a distanciar-se do bulício das multidões, por quais motivos, em pleno século XXI, o homem ainda se deixa levar pela arrelia dos incautos, dos desbussolados? Emaranhado, incapaz de resistir aos estímulos intrusivos e arrastado pela multidão rumorosa e desnorteada que segue por tantos caminhos que dão em lugar nenhum, sem tempo ou capacidade para vivenciar suas próprias experiências, o homem pode ver muitas coisas, mas não enxergar um palmo diante do nariz.
“Não a vida ativa, mas só a vida contemplativa é que torna o homem naquilo que ele deve ser”. (HAN, 2017, p.50).
O indivíduo da sociedade positiva, o sujeito do desempenho explora a si mesmo até sucumbir, esgotando-se até a morte. Morte que representa a fusão entre realização e autodestruição. Esse mesmo indivíduo concorre consigo mesmo procurando sempre superar a si próprio numa autocoação infindável que o leva ao Burnout e outros transtornos da mesma esfera. Podemos afirmar ainda que esse sujeito da autocoação é regido paradoxalmente pelo Id, pois busca uma satisfação inversa por ser um indivíduo que trocou o princípio do prazer pela autoexploração, ele não possui a autorregulação da instância do Superego, como apontado por Sigmund Freud. Não há repouso na excitação.
“Os fatos que nos fizeram acreditar na dominância do princípio de prazer na vida mental encontram também expressão na hipótese de que o aparelho mental se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto o possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante”. (FREUD, 1925, p.5).
Sem, então, o controle da instância do Superego, nunca haverá limites para a autocoação, auto-agressividade e assim, a Depressão maior ou Burnout podem, não raramente, levar ao suicídio. Não obstante, Depressão e Burnout são as doenças psíquicas do século XXI. Regido, então, pelo Id o animal laborans se nutre ainda da ilusão de que mais capital é sinônimo de mais vida e acaba substituindo uma boa vida pela histeria da sobrevivência. Com todo o positivismo da sociedade do cansaço e do trabalho cada um se torna vítima e algoz de si mesmo, cada um carrega seu próprio campo de trabalho forçado onde “o trabalho não liberta”. Contrariando a “autodesrealização” marxista vemos a euforia da alienação da autorrealização, euforia esta facilmente observada em eventos onde “côutins” ensinam como é bom se autodestruir, ensinam como trocar a vida pela autoprodução e autoexploração, ensinam como trocar a liberdade pela autocoação.
A sociedade do positivismo e do cansaço, sucumbida ao hipercapitalismo, transforma tudo que é humano em produto, as relações humanas se transformam em relações comerciais e substituem a dignidade humana pelo valor de mercado onde tudo é rebaixado ao nível zero. Essa loja de pessoas positivadas, essa vitrine de animal laborans não se difere muito de um manicômio.
Não consigo imaginar um mundo sem o trabalho, mas confesso que sonho com um mundo que devolva à humanidade a dignidade de viver. Talvez o século XXI consiga tal façanha. Deixo aqui a recomendação de uma música intitulada SECULO XXI escrita por Marcelo Nova e Raul Seixas e lançada por eles mesmos em 1989 no LP “A panela do diabo” em que a única coisa que tem de diabólica é a sociedade retratada na música, como que uma premonição dos dias atuais.
Adão Zambelli de Carvalho.
Psicólogo.
CRP – 06/160959.